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StandWithUs Brasil / Anne Frank

96 anos de Anne Frank: Entre legado e o apagamento

Diário de Anne Frank resiste ao tempo, revelando a voz de uma jovem judia silenciada pelo Holocausto e suavizada pela memória coletiva

Redação Publicado em 12/06/2025, às 15h00

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Anne Frank na escola, por volta de 1940 - Domínio Público
Anne Frank na escola, por volta de 1940 - Domínio Público

Anne Frank foi apenas uma entre os seis milhões de judeus assassinados pelos nazistas entre 1939 e 1945; apenas uma entre os cerca de 75% da comunidade judaica dos Países Baixos que pereceu nos campos de extermínio; e apenas uma entre os aproximadamente 1,5 milhão de crianças judias mortas durante o Holocausto. Contudo, sua escrita permanece, ecoando por gerações.

A família Frank e Anne

Anne Frank nasceu em 12 de junho de 1929, em Frankfurt, na Alemanha. Filha mais nova de Otto e Edith Frank, cresceu em um lar assimilado e de classe média judaica, com forte valorização da educação e da cultura.

Em 1933, com a ascensão de Adolf Hitler ao poder e o recrudescimento das políticas antissemitas na Alemanha, a família Frank decidiu emigrar para os Países Baixos. Otto Frank, que já tinha conexões comerciais com Amsterdã desde antes da guerra, foi o primeiro a se estabelecer; Edith e as filhas se juntaram a ele em dezembro do mesmo ano (Franklin, 2025).

Nos anos seguintes, Anne teve uma infância relativamente normal, frequentando escolas locais, aprendendo o idioma holandês e mantendo amizades diversas — como mostram fotografias e lembranças resgatadas por biógrafos como Melissa Müller e Ruth Franklin.

Com a ocupação nazista dos Países Baixos em 1940, tudo muda. Os judeus aram a ser alvo de leis cada vez mais restritivas. Em julho de 1942, após Margot Frank receber uma ordem de deportação, a família se escondeu em um espaço secreto nos fundos da empresa de Otto, localizado na Prinsengracht 263.

O esconderijo, posteriormente conhecido como “anexo secreto”, foi cuidadosamente mantido em sigilo por colaboradores não judeus, como Miep Gies e Bep Voskuijl (Franklin, 2025; Sagan, 1995).

Victor Kugler, Esther, Bep Voskuijl, Pine Wuurman e Miep Gies, funcionários de Otto / Crédito: Divulgação / Casa de Anne Frank

Durante os mais de dois anos em que viveu confinada com os pais, a irmã e outros quatro judeus, Anne escreveu um diário no qual registrou não apenas o cotidiano da clandestinidade, mas também suas reflexões sobre a condição humana, o amadurecimento e a brutalidade do mundo exterior.

Para Ruth Franklin (2025), Anne não era apenas uma adolescente confessional, mas uma escritora em formação, que revisava intencionalmente seus textos para futura publicação, em resposta a um apelo do governo holandês no exílio, que pedia relatos da ocupação.

Em agosto de 1944, após 760 dias de reclusão, o esconderijo foi delatado e os oito ocupantes foram presos pela Gestapo. Anne foi deportada para o campo de trânsito de Westerbork, depois para Auschwitz e, por fim, para Bergen-Belsen, onde faleceu, provavelmente de tifo, entre fevereiro e março de 1945. Sua irmã Margot morreu dias antes. O pai, Otto Frank, foi o único sobrevivente entre os escondidos.

De acordo com Alex Sagan (1995), a ausência de testemunhos escritos sobre os últimos meses de vida de Anne — marcados pela fome, doença e desumanização — facilitou, em décadas posteriores, a construção de uma imagem excessivamente otimista da jovem, muitas vezes resumida à célebre frase “ainda acredito na bondade humana”, retirada de seu diário sem o devido contexto.

Símbolo universal?

A consagração de Anne Frank como símbolo universal da esperança e da bondade humana representa, segundo diversos estudiosos, um processo complexo de despolitização da memória e esvaziamento de sua identidade judaica.

Alex Sagan (1995) demonstra que a frase mais célebre de seu diário — “ainda acredito que as pessoas são realmente boas de coração” — foi destacada seletivamente por adaptações teatrais e cinematográficas que buscavam produzir uma narrativa palatável ao público ocidental do pós-guerra, sobretudo o norte-americano e o alemão.

A peça de 1955 escrita por Goodrich e Hackett, ao enfatizar valores humanistas e universais, transformou Anne em uma figura quase angelical e assimilável, apagando o caráter especificamente antissemita do genocídio que a vitimou.

Sagan (1995) observa que essa representação oferecia conforto emocional e identificação sem exigir o enfrentamento do antissemitismo ou da cumplicidade coletiva com o Holocausto. O sucesso da peça diz mais sobre os bloqueios e as necessidades de conforto das sociedades que a acolheram do que sobre a própria Anne Frank.

Esse fenômeno foi aprofundado por análises historiográficas reunidas no dossiê Anne Frank: le journal, l’histoire, la mémoire, organizado por Wieviorka, Fresco e Ternon (1999), que questionam os efeitos dessa “memória domesticada”. Annette Wieviorka (1999) denuncia que o processo de canonização de Anne promoveu uma “desjudaização” deliberada de sua figura, suprimindo o destino trágico em Bergen-Belsen e o contexto genocida nazista em nome de uma mensagem pacificadora e genérica.

Nadine Fresco (1999) acrescenta que essa sacralização secular de Anne, embora bem-intencionada, atua como uma forma de silenciamento: ao transformá-la em ícone apolítico e universal, priva-se sua história de densidade histórica e impede-se o reconhecimento pleno da Shoá como violência dirigida contra os judeus enquanto tais.

Páginas do diário de Anne Frank / Crédito: Getty Images

O “O Diário de Anne Frank” se tornou, assim, não apenas um testemunho pessoal, mas um artefato moldado por pressões culturais, educativas e comerciais que, ao canonizá-lo, também o esvaziaram de seu poder subversivo. Frente a isso, torna-se urgente resgatar Anne Frank como sujeito situado — uma jovem judia que escreveu diante do horror — e não apenas como símbolo genérico de otimismo.

Da desumanização ao legado contra o ódio

Nos campos de extermínio, a estratégia nazista de desumanização era sistemática: cabelos raspados, propriedades confiscadas, uniformização, numeração de corpos — um processo calculado para apagar identidade, dignidade e humanidade. Anne Frank foi uma das vítimas dessa máquina de morte.

No entanto, seu diário se ergue como antítese simbólica a essa lógica de aniquilação. Ao narrar seus temores, anseios, conflitos típicos da adolescência e sua própria interioridade, Anne resgata para si — e, por extensão, para milhões de vítimas anônimas — aquilo que o nazismo tentou extirpar: a subjetividade e a voz. Na avaliação de Norma Jane Zuckerman (2020), o testemunho de Anne não apenas humaniza o Holocausto, mas permite o encontro ético entre jovens leitores e uma vítima histórica concreta, capaz de provocar empatia e reflexão.

A força do legado de Anne Frank reside em três eixos interconectados. O primeiro é o direito à memória e à humanização da história. Ao narrar sua vivência singular como adolescente judia sob perseguição, Anne rompe com o anonimato das vítimas do Holocausto e confere rosto, voz e densidade emocional a uma tragédia frequentemente tratada em termos estatísticos. Zuckerman (2020) enfatiza que essa dimensão pessoal da narrativa é fundamental para formar leitores capazes de compreender a história não apenas como um acúmulo de fatos, mas como experiência vivida — com dores, silêncios e esperança.

Esconderijo de Anne Frank / Crédito: Divulgação / Anne Frank Stichting Fundation

O segundo eixo é a pedagogia da empatia. O diário é amplamente adotado no ensino básico e médio, sobretudo nos Estados Unidos, onde a pesquisa de Zuckerman analisou seus efeitos subjetivos em estudantes. A autora argumenta que o texto de Anne contribui para o desenvolvimento de um “alfabetismo ético” — a habilidade de reconhecer a dignidade do outro e de refletir sobre as consequências da intolerância.

No entanto, Zuckerman também adverte que certas abordagens pedagógicas tendem a esvaziar o conteúdo histórico e político do diário, reduzindo-o a uma narrativa inspiradora de superação, sem a devida ênfase no contexto de genocídio e antissemitismo que o motiva.

Por fim, o terceiro eixo diz respeito ao alerta contemporâneo frente ao antissemitismo e ao negacionismo, ambos em ascensão alarmante nas últimas décadas. O diário de Anne Frank continua sendo alvo de campanhas de deslegitimação — como as infundadas alegações sobre o uso de caneta esferográfica, frequentemente mobilizadas por teorias conspiratórias.

Esses ataques revelam o incômodo persistente que sua memória provoca: a lembrança incômoda de um crime histórico que ainda desafia consciências e cuja negação é, em si, um sintoma do seu poder político e simbólico. O testemunho de Anne não pertence ao ado. Ele interpela o presente.


Referências:

BRENNER, Rachel Feldhay. Writing herself against history: Anne Frank’s self-portrait as a young artist. Modern Judaism, v. 16, n. 2, p. 105–134, 1996.

FRANKLIN, Ruth. The many lives of Anne Frank. New Haven: Yale University Press, 2025

SAGAN, Alex. An optimistic icon: Anne Frank’s canonization in postwar culture. German Politics & Society, v. 13, n. 3 (36), p. 95–107, 1995.

TERNON, Yves; WIEVIORKA, Annette; FRESCO, Nadine (Dir.). Anne Frank: le journal, l’histoire, la mémoire. Vingtième Siècle. Revue d’histoire, n. 64, oct.-déc. 1999.

ZUCKERMAN, Norma Jane. The Impact and Influence of The Diary of Anne Frank on Middle and High School Students. 2020. 233 f. Dissertação (Mestrado em Teatro) – University of Nevada, Las Vegas, 2020.